obsevações de leitura O QUE DEVÍAMOS TER FEITO, de Whisner Fraga
por Sandra Abrano
Em seu décimo primeiro livro, Whisner Fraga alcança um tom maior
Se tem uma coisa que não é fácil manter na escrita ficcional, é uma linguagem lírica. É o que se quer contar em íntima relação com os sentidos, é um provocar sentimentos pela combinação certa de palavras e ritmo e alcançar isso sem tropeçar em construções superficiais, é um feito.
Em O QUE DEVÍAMOS TER FEITO, Whisner Fraga alçança esse tom, tendendo para a angústia e dor na descrição dos fatos da vida e dos embates com a violência.
Já adianto que é um livro que provoca.
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Publicado pela Patuá em 2020 com a subvenção sempre bem-vinda do PROAC-SP, é um livro com 14 contos apresentados por Ronaldo Cagiano no texto intitulado “A autópsia de nossa desilusão”.
Os contos são breves, não se estendem por mais de 5 ou 6 páginas e isso é bom, porque eles chegam carregados de sentidos, exigindo entrega do leitor. A minha medida foi um conto por vez. São narrativas densas, de linguagem elaborada, com resultado sofisticado.
A escrita de Whisner Fraga, neste livro, subverte algumas regras comuns: não há maiúsculas nem para nomes próprios, e a pontuação é utilizada para dar ritmo, cadência aos trechos.
Assim, o que termina uma frase não é um ponto final. Colchetes são bem utilizados para apresentar mais uma voz ao texto. A edição foi feliz em manter um espaço entre um parágrafo e outro, o que facilitou muito a fluência da leitura. São usos bem aplicados, mas não exatamente originais.
Helena é a interlocutora de boa parte dos contos:
“e se tivéssemos desistido, se percebêssemos que o melhor, helena, seria a tarde em família, a intimidade evitada, o incômodo convívio dos últimos dias desmantelado por uma certa boa vontade, por uma pitada de diálogo, quem sabe?”
Helena não interage com voz própria e nem precisa: o narrador se encarrega dos mergulhos (dor, loucura, assédio e violência), usando os fluxos de consciência com propriedade e intensidade. O resultado é um mergulho! Tome fôlego para ir fundo porque vale a pena.
Whisner Fraga não se poupa e nem ao leitor da exposição sincera de confidências dolorosas, como em AMBIÇÃO, o angustiante conto que acompanha o sonho de um pai e de um menino, em ser astro de futebol.
Em JARDIM PROVISÓRIO o conto inicia com a conclusão que “a felicidade, helena, é um projeto em construção” para acessar lembranças esparsas, “partes de uma história avariada por eletrochoques”.
“a esperança, helena, é um complô de desejos,”
Chegamos ao que considero o meu conto preferido da seleção, alçado por mim à categoria “caramba! esse é especial”: SOPRO, narrado em primeira pessoa como a maioria dos contos aqui publicados, apresenta a despedida de dois amigos, um deles doente, exausto.
Com um trecho desse conto fecho minhas “observações de leitura”, concluindo que Whisner Fraga sabe por onde prender o leitor, sem deixar chance de escape. O escritor dá a pista, provoca o interesse, o frisson e, com grande habilidade, o leitor vê sua curiosidade transformar-se na mais pura aflição.
O cara é bom!
“morria, morria muito, morria vagarosamente, pacientemente, meu amigo, até que me revela não recear a morte, helena, porque não tinha direito a esse luxo: não temeria o inevitável, e se subia quatro lances de escada, afoito, acanhado, duvidava de sua forma, pedia para que o livrassem da ferrugem a tragar seu oitavo de pulmão, e ofegava naquela escala, como se desafiasse a tropa de células que traíam seu corpo, e ele seguia levando seu deus taciturno, como se desejasse provar que há um negócio chamado fé, a dar conta de tudo e por isso não receava o fim: porque havia essa esperança de prorrogação, indefinida.”
O QUE DEVÍAMOS TER FEITO, Whisner Fraga, Patuá, 2020, São Paulo, 162 páginas.
Observações de leitura, por Sandra Abrano.
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